terça-feira, 11 de agosto de 2015

Relato do Caso: Transtorno de Bordeline e Psicoterapia Dinâmica

Relato de atendimento clínico de Adulto, Homem, 21 anos, na linha Psicanalítica, mais especificamente na Psicoterapia Dinâmica Breve, Transtorno de Personalidade Borderline.(Adaptado)
 
    Batista (os nomes são fictícios), 21 anos, mulato, brasileiro, solteiro, cursava o terceiro grau, era prestador autônomo de serviços, de origem católica. O paciente tinha estatura e peso médios e, geralmente, vestia-se com simplicidade.

Impressões Iniciais

   Na primeira sessão, Batista chegou com uma hora de atraso. Entrou na sala da psicoterapia, aguardando a orientação do psicoterapeuta sobre onde deveria sentar-se. Inicialmente, perguntou pela estagiária que o havia atendido na triagem, preocupando-se com a possibilidade de ter que passar, ainda, para outro terapeuta. É normal que o paciente faça um vínculo já com o primeiro profissional que o atende. Logo depois, Batista disse que não estava à vontade e que nunca havia feito terapia. Somente após esclarecimentos sobre a PDB(Psicoterapia Dinâmica Breve) e o contrato, passou a expressar-se melhor. Batista aparentava bom nível de inteligência e falava sobre diversos temas. Perguntou sobre hipnose e o seu uso na terapia; falou de sua impulsividade e personalidade, ocorrendo uma ideação paranóide(1). O terapeuta escutava-o com atenção e preocupação.

Motivo da consulta e sintomas apresentados

   Batista apresentava as seguintes queixas: sentia-se deprimido, caótico e um “vazio”; autoagredia-se, chegando a machucar-se; mudava de estado de ânimo sem razão aparente; indecisão; falhas de memória e atenção; dificuldade em lidar com as perdas; buscava uma razão para tudo isso. Gostaria de não ser tão distraído e “sem memória”, pois tudo isto prejudicava-o em sua vida. Comparou seu funcionamento cognitivo com o de um computador, que, quando tem muita memória ocupada, funciona lentamente ao se apertar o “enter”. Disse que, talvez, isto pudesse ter algo a ver com alguma memória antiga, algum trauma, etc.
   As suas fantasias de cura pareciam estar ligadas à expectativas imediatistas de melhora de seus sintomas: gostaria de se submeter a uma hipnose ou queria ter uma serra para abrir sua cabeça e ver o que o incomodava tanto.
   Ideações paranóides foram detectadas logo na primeira entrevista, nos momentos em que o paciente relatava ter a impressão de que havia pessoas escutando-o atrás da porta ou olhando pela janela. O terapeuta surpreendeu-se com os sintomas e o sofrimento do paciente, ficando preocupado o resto do dia. Recorreu então à sua supervisora, bem como à sua terapeuta, que funcionava como um continente para as angústias.

Resumo da história pregressa e atual

   Batista era um menino que se considerava feliz até os 4 anos, época de muitas brigas entre seus pais. Sua mãe, após trair seu pai, apanhou do mesmo e foi expulsa de casa. O paciente disse que não conseguia sentir nada ao lembrar de tudo isso, mas pensava que deveria sentir. Após esse fato, sua infância mudou bastante, para pior. Seu pai conheceu uma outra mulher, que veio a ser sua madrasta. O paciente tinha o costume de brincar com insetos mortos, os quais gostava de enterrar. Quando criança ajudava seu pai no trabalho, a quem gostava muito de fazer perguntas. Batista era chamado de “CDF” pelos colegas e outros garotos da escola, fato que odiava. Até uma certa idade, urinava na calça, o que fazia-o sentir-se inferior ao seu irmão.
   Nesta época, seu pai penteava o seu cabelo com bastante força, para que ele não fosse discriminado na escola por sua ascendência materna negra. Morava numa cidade do litoral e trabalhava numa discoteca. Quando expressou vontade de prestar vestibular, não foi estimulado pelos seus familiares. Na ocasião, tinha problemas de relacionamentos com as pessoas e sentia a falta de uma namorada. Há alguns anos, seu pai sofreu um derrame e ficou com os membros paralisados. Quando Batista sentia-se deprimido queria ficar sozinho e parado, sem fazer coisa alguma. Quando sentia-se assim com os amigos, só escutava. Irritava-se quando estes lhe perguntavam a razão daquele estado; ele dizia que estava cansado, que estava com dor de cabeça, ou algo parecido.
 
   Gostava de fazer tudo por prazer. Às vezes, fazia gestos e sentia coisas estranhas: tremedeira, inquietude, sentimento de caos e vazio, batia em sua própria cabeça ou plantava bananeira e perdia a noção do passado e só tinha consciência do presente. Sentia-se muito inseguro e superficial. Cursava a universidade e tinha uma namorada (Débora), há cerca de três anos.

Hipóteses de trabalho

1    Hipótese Diagnóstica: Transtorno de Personalidade Borderline. Os critérios para esta patologia estão de acordo com a quarta edição do Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais (DSM-IV, 1994/1995) 

2.    Hipóteses Psicodinâmicas: a) dificuldade em elaborar o luto pela perda da mãe; b) bloqueio da afetividade; c) dificuldade para verbalizar experiências e desejos sexuais.

3.    Foco: Trabalhar o luto pela perda da mãe e o consequente bloqueio das emoções
4.    Atendimentos propostos inicialmente: 25; prorrogação:10; total: 35.

Evolução do paciente durante o processo

    O paciente veio a Clínica por iniciativa própria. No início, mostrava-se pouco cooperativo. Atrasos e faltas ocorriam com frequência. Às vezes, dizia precisar da psicoterapia. Inicialmente, o terapeuta sentiu dificuldade em lidar com a resistência, sentindo-se desvalorizado e até agredido. Pacientemente, este buscava monitorar a contratransferência, evitando assim atuações da sua parte. É muito importante que o psicoterapeuta esteja alerta às manifestações de resistência do paciente, para que esta possa ser trabalhada adequadamente no contexto psicoterápico, no sentido de ser neutralizada e dissolvida. Para seus atrasos e faltas, a postura ativa do terapeuta foi fundamental: combinou-se que se ele chegasse atrasado, perderia aquele tempo da terapia e se ele não viesse por algum motivo banal, não haveria reposição da falta. Desta forma, os limites foram colocados claramente, reforçando-se o setting, o que parece ter contribuído para a viabilização do atendimento do paciente.
    O primeiro objetivo psicoterapêutico foi, basicamente, conscientizar Batista sobre a sua necessidade de atendimento e os benefícios que ele poderia ter com a psicoterapia. Após este objetivo ter sido alcançado, o processo transcorreu melhor e, a cada sessão, o paciente mostrou-se mais envolvido com o tratamento.
 
    As expectativas imediatistas de cura do paciente foram trabalhadas, e as intervenções do psicoterapeuta pautavam-se na clarificação de que a psicoterapia não é como um tratamento médico tradicional. É um processo, que se constrói com o decorrer do tempo, no qual se reelaboram aspectos da vivência pessoal, e para atingir tal objetivo ela exige esforço, paciência e empenho do paciente.
  
  A participação de Batista foi modificando-se, desde o início até o final da psicoterapia. Num processo lento e gradual, sua participação e seu envolvimento no trabalho foram aumentando; o paciente foi “abrindo”-se, soltando-se e colaborando com a psicoterapia.
    O paciente demonstrou possuir uma boa capacidade de insight durante o processo psicoterápico.  Foi feita uma hipótese interpretativa ao paciente através da formulação de que o fato de ele ter brincado de enterrar insetos mortos durante a infância poderia estar ligado ao fato dele estar simbolicamente tentando elaborar o luto por uma perda muito significativa de sua vida, muito provavelmente o da perda de sua mãe. Batista respondeu: interessante...é, legal...cada vez que eu escuto e aprendo aqui, parece que eu vou usar no meu dia-a-dia, como se fosse um manual de sobrevivência. Uma outra formulação interpretativa feita pelo psicoterapeuta, bem aceita e compreendida pelo paciente, foi a de que sua reação inicial ao ver este (após ter passado por rápido atendimento por outra estagiária do sexo feminino, que realizou a triagem) parecia ter relação com a situação em que foi abandonado pela mãe e viu-se sozinho com o pai, quem iria cuidar dele a partir daquele momento. Não fora à toa que logo na primeira sessão, quando o paciente perguntava algumas coisas para o psicoterapeuta, lembrara-se que gostava muito de fazer perguntas também para o seu pai, quando criança. O terapeuta, por sua vez, sentira-se como o pai, que, a partir daquele momento, deveria cuidar e preocupar-se com o filho abandonado.
 
   A questão da ambivalência, sempre presente no discurso do paciente, foi trabalhada também: ele amava, mas odiava; ele queria, mas não queria; ele gostava, mas não gostava; não sabia se era negro ou branco: Eu sou sempre indefinido...quando o assunto é de raça, me incomoda: porque eu não sou nem preto, nem branco; psicologicamente, eu não sei quem sou
   Ele era mestiço, filho de uma mãe negra e de um pai branco. Além deste aspecto, a sua história de vida mostrava indícios de como isso foi sendo construído. Sua mãe foi uma mãe boa e carinhosa no início ( Eu era o xodó dela e ela me defendia), mas Batista também achava que ela foi muito má, por ter traído o pai e abandonado os filhos (minha mãe aprontava com um vendedor que passava lá em casa, por isso fiquei do lado do meu pai e é como se ela tivesse merecido o que aconteceu). Por outro lado, o seu pai foi mau, pois não perdoou a sua mãe, expulsando-a de casa, e, ainda, porque não tinha Batista como seu xodó; mas, também foi muito bom, pois foi ele quem cuidou dos filhos.
   Apresentava em certos momentos ideias confusas e lapsos de memória, principalmente quando o assunto era um pouco mais delicado para ele: Onde é que eu estava? ou Por que eu estava falando disto?. O curso do pensamento era então interrompido, e isto ocorria mais no início da terapia, ao falar do abandono da sua mãe e/ou de brigas com a namorada atual. Foi-lhe apontado que este bloqueio cognitivo parecia estar mais ligado a uma defesa, ao deparar-se com situações e vivências difíceis de suportar, intervenção esta que lhe trazia maior controle e permitia uma continuidade da reflexão. Da mesma forma, suas ideações paranóides vinham em momentos em que o paciente falava de assuntos mais profundos e ansiógenos, porém à medida em que estas questões eram clarificadas, o paciente voltava à realidade. Era também nos momentos mais complicados da vida de Batista que suas “crises” apareciam, como após uma discussão com a namorada. Relatava ter dificuldade em descrever o que sentia em suas “crises”. No entanto, eis alguns momentos da psicoterapia em que comentou sobre esses episódios:

Tem a ver um pouco com a loucura: você fazer o que tem vontade. Parece que a única coisa que te para é a morte...Teve uma que extrapolou, numa discussão com a Débora; nós não conseguimos nos entender; comecei a me bater; Sabe, é ruim mas é bom. Eu tenho medo de ter, mas também tenho um pouco de vontade de ter. Se nunca mais aparecer, eu tenho muito dó...perda. Lidar com a perda é muito problemático para mim...Parece que as coisas mais profundas vão se revelando.

   As “crises” foram bastante pesquisadas, e pareciam vir principalmente em momentos em que Batista sentia a iminência do retorno da vivência traumática infantil ligada ao abandono. A “crise” seria a válvula de escape, a sua última defesa como uma forma de sobrevivência emocional. Após decorridas as 25 sessões, inicialmente propostas, em que foram trabalhadas as características depressivas ligadas ao abandono da mãe, foram oferecidas mais dez sessões, com o objetivo de se trabalhar melhor a separação e o término da psicoterapia.

Término do processo

   A visão de Batista sobre a terapia foi se modificando com o decorrer das sessões. Eis o que ele verbalizou no final:

É bom fazer terapia, pois nessas horas eu me sinto melhor. Agora, eu sei mais quem eu sou. Eu me apoiei em alguma coisa...e isso me dá alívio; Eu estou contente por ter passado um tempo e agora eu vir para cá, sem ficar achando que não vale a pena. Antes, eu entendia bem menos o que estava fazendo aqui. Você vai se descobrindo.

   Para avaliação do término da PDB, foi aplicado o Questionário de Avaliação Subjetiva - QAS (Azevedo, 1988) e procurou-se complementar os dados com a análise dos comentários e das vivências do paciente.
 
   Batista notou melhora em seus sintomas, relatando que aprendeu a lidar melhor com seus comportamentos, suas dificuldades e entendera um pouco sobre as causas desses problemas. Sentia-se melhor do que antes da terapia e notou melhoras em seu rendimento nas esferas do trabalho, familiar, da amizade e cognitiva. Conscientizou-se da relação existente entre eventos do passado e sua vida atual, achando que não poderia ter dispensado a terapia. Outro dado obtido através do QAS mostrou a sua satisfação com o atendimento e que, se lhe fosse possível, prolongaria a terapia.
   Ao longo do processo psicoterápico o paciente foi tomando consciência da sua patologia e da necessidade de se submeter a um tratamento mais prolongado.

Conclusões

   Como foi possível observar neste relato, o atendimento ao paciente borderline é desafiante. Coloca em xeque a capacidade técnica, teórica e de tolerância do terapeuta, bem como o próprio sistema de atendimento em saúde mental. A análise deste caso veio corroborar a hipótese de que é possível atender pacientes com transtorno de personalidade borderline dentro da PDB. No caso relatado foram alcançados vários objetivos, dentre os quais destacam-se: 1) a conscientização do paciente no tocante a sua patologia e necessidade de tratamento; 2) elaboração da perda de sua mãe; 3) compreensão de alguns aspectos significativos de sua história de vida. A peculiaridade desta modalidade de atendimento parece estar relacionada ao estabelecimento de objetivos terapêuticos condizentes com as reais possibilidades e limites de cada paciente.
 

(1) Ideação Paranóide: Ideação delirante envolvendo suspeitas ou a crença de que o indivíduo está sendo assediado, perseguido ou injustamente tratado

Fonte: (se você gostou desse estudo de caso leia o ótimo artigo-fonte para mais detalhes )
CUNHA, Paulo Jannuzzi; AZEVEDO, MASB de. Um caso de transtorno de personalidade borderline atendido em psicoterapia dinâmica breve. Psicoterapia: Teoria e Pesquisa, v. 17, n. 1, p. 5-11, 2001.

http://www.psicnet.psc.br/v2/site/dicionario/registro_default.asp?ID=178

quarta-feira, 22 de julho de 2015

Estudo de caso em Gestalt Terapia

Relato de atendimento clínico de Adulto, Mulher, 43 anos, na linha Humanista, mais especificamente na Gestalt Terapia, nenhum transtorno evidente.

     Usa-se aqui no relato o nome fictício de Tácita (Deusa romana do silêncio e da virtude), para a cliente atendida. Tácita é uma mulher 43 anos, professora do ensino médio em escola estadual (Formada em Letras), casada há 13 anos, com uma filha de 10 anos, mora junto com eles o pai de Tácita.

    Ela foi criada por duas tias, irmãs do pai, e sempre soube quem era a mãe, mas teve pouco contato. Tácita sempre se refere à tia mais velha como mãinha, e à mais nova como tia. As duas faleceram. A mais nova em 2002 e a “mãinha” em 2006. 

    Tácita em primeiro momento destaca uma queixa clara “estou acima do peso e isso está me deixando nervosa e com autoestima baixa”. Robine (2003) e Andrade (2007), afirma que em situação à clínica não devemos desacreditar uma queixa inicial, por mais que haja indícios aparentes de contradição ou racionalização extrema. Posicionei-me na direção não de descrédito em relação à fala da cliente, mas de questioná-la em como era aquele sentimento. Ao questionar Tácita, foram se abrindo caminhos para novos diálogos. Questionei como ela lidava com essa angústia, Tácita então trouxe à tona, que ela sentia falta de uma vida que já não tinha, era uma pessoa que gostava de conhecer e conversar com pessoas. Estava engessada, aqui se ressalve, a forma de comunicação de Tácita em nada tinha haver com o conteúdo. Sua forma de falar era sempre altiva e extrovertida.
 
     A observação acima envolve um conceito fundamental da GT, o de awareness, ou seja, a consciência organísmica da intencionalidade (POLSTER; POLSTER, 2001). Quando se apresenta a fuga ou escapismo da noção do próprio self, encontra-se uma dissonância conflitante que pode gerar uma angústia extrema e imediata, ou um processo de deflexão constituído com base na cristalização de conteúdos e vivências (ANTONY, 2009; ROBINE, 2003; YONTEF, 1998).

    Ao longo dos questionamentos insurge a figura marital, como impedimento para novos contatos e passeios tão valorizados por ela. Neste momento questiono como se sente em seu casamento. Ela enumera algumas adversidades, então problematizo como ela sente a felicidade. Surge aqui um dado relevante, ela pergunta “O que você acha que devo fazer?”. Questiono: o que você acha que deve fazer? Ela retorna: “Você acha que devo me separar?”. Então coloco o que você acha que deve fazer, e ela mais uma vez: “não sei e você o que acha mesmo?”. Aqui intervenho perguntando se ela sempre espera dos outros a validação para a vida dela. Ela pensa um pouco, e responde que sim. Questiono então como se sente em relação ao que ela quer. Ela não consegue elaborar os conteúdos de forma pessoal, sempre se explicando através de exemplos, muitas vezes sem relação com ela. Abro um parêntese aqui para destacar que as intervenções foram feitas em acordo com o momento do processo terapêutico, levando em consideração a função de cada um na relação dialógica estabelecida, evitando um retraimento ou afastamento (ANDRADE, 2007; FERREIRA, 2009; ZINKER, 2001). Pois já alerta Gadamer sobre o ato de interpretar o outro: “aqui encontramo-nos permanentemente sob a ameaça de nos apropriarmos do outro na compreensão e, com isso, ignorar a sua alteridade”, (2004, p.396). Para evitar a concretização de tal ameaça questiona-se, para poder assim ser ao mesmo tempo disponível e possibilitando ao cliente a abertura ao que há de vir, bem como o lugar de condutor no processo de auto-compreensão.

     Tácita retoma o processo dizendo que sempre tem uma dificuldade grande em negar qualquer pedido, mesmo que seja descabido, pois gera uma ansiedade profunda a possibilidade de desagradar o outro. O que deixa claro uma “deformidade” na sua fronteira de contato, pois os contatos deixam de se pautar na relação de afetação mutua, para se basear em uma hierarquização dos pólos. 

    Como relatado em todas as supervisões em que abordei a psicoterapia com Tácita, destaquei um elemento recorrente: a dificuldade para ela falar dela mesma, em termos subjetivos e de suas emoções, o que foi também frequentemente emergido e exposto na relação clínica. Ela ressalta em dado momento a dificuldade em também se colocar em relação ás suas insatisfações com os outros, o medo de desagradar é muito forte. Tomo aqui o conceito de figura e fundo, para poder evidenciar que em uma visão da GT toda pessoa deve ser em processo dinâmico figura e fundo na vida, pois cristalizar-se em uma posição estará perdendo ou abrindo mão de sua condição ser sempre estando a viver em possibilidades (PERLS, 1980; ROBINE, 2003; GADAMER, 2004). Ao cristalizar-se como fundo, Tácita explica que mesmo quando está em momento de extrema felicidade, é desencadeada a angústia pelo receio do fim da felicidade. Ela apresenta freqüente comparação com o que já foi e o que pode vir a ser, com o quem é hoje, sempre denotando mais sentido crítico com o ser do hoje. Aqui vemos uma clara visão depreciativa do campo perceptual. Percebe-se que os vetores perceptivos em Tácita, estão produzindo uma resultante onde fica subjugada a carga do presente, este como base ou estado único de possibilidade concreta de mudança.

     Os atendimentos de Tácita sofreram frequentes alterações de horário, seja por motivação minha, ou dela, tendo em vista uma auto-crítica em relação ao meu trabalho e passividade da cliente com a situação, a questionei se não a incomodava tais alterações de horário. Prontamente ela disse que não, pois sabia que eu tinha motivos sérios, indaguei novamente, independente do motivo justo ou não, se isso não a deixava chateada. E então surgiram as palavras “É porque eu penso muitos nos outros e esqueço de mim”. Vou aqui fazer uso pontual de uma lógica do Cronos, para melhor aclarar o que vem a seguir. As palavras acima foram proferidas na penúltima sessão, onde ela se deu conta, não de imediato, mas quando questionei se ela achou que havia falado dela, ela disse que sim, e continuei “Você precisou ouvir de alguém para confirmar o que você pensou sobre você?” Prontamente ela disse que não, então problematizei: “A resposta que você tanto espera dos outros, veio de quem?” Um pouco surpresa e com um leve sorriso de alegria, disse ela: “De mim”.

    Uma semana após, no atendimento seguinte, ela disse haver pensado muito e que tinham sido dias de muita reflexão, e ela queria contar um acontecimento. O problema seria que a mesma abriu mão algo de valor material e sentimental, e por se curvar às falas dos outros, ela abriu mão de resolver o problema também por isso Tácita perdeu duplamente, contudo, ao contar o que havia acontecido ela se disse resoluta, isso causa angustia há 02 anos, “Porque sei o que quero fazer e o que é certo, mas não fiz, por causa dos outros”. E significou em frase íntima a si mesma: “Estou aliviada e feliz”. 

     No que foi  retratado  acima ocorreu à aceitação da lembrança, nos dizeres de Gadamer aconteceu o desesquecimento, desesquecer, é aceitar e se apropriar, deixando de ser propriedade cristalizada. Tácita ao aceitar o que emerge, a sua submissão ao outro (papel cristalizado de fundo), deixa o caminho aberto para que ocorra um processo que denomino figuração, o conteúdo se movimenta dinamicamente para uma posição de figura, este processo não é alheio ao ser, pelo contrário é ele da forma mais clara que pode transparecer o ser em sua intenção presentificada.
Em Tácita essa ação se verte em torná-la figura de si mesma,

FONTE:

FILHO,A.Q.O; VASCONCELOS,B.N , Dialogicidade e processo psicoterapêutico em Gestalt Terapia: Um relato de caso clínico. Revista IGT na Rede, v.11, nº 20, 2014. p. 40 – 47. Disponível em http://www.igt.psc.br/ojs/viewarticle.php?id=484&layout=html